Mensagem do Santo Padre Francisco para a celebração do Dia Mundial da Paz — 1.° de janeiro de 2020
5 Janeiro 2020
A PAZ COMO CAMINHO DE ESPERANÇA: DIÁLOGO, RECONCILIAÇÃO E CONVERSÃO ECOLÓGICA
1. A paz, caminho de esperança face aos obstáculos e provações
A paz é um bem precioso, objeto da nossa esperança; por ela aspira
toda a humanidade. Depor esperança na paz é um comportamento humano que
alberga uma tal tensão existencial, que o momento presente, às vezes até
custoso, «pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos
estar seguros dessa meta, se esta meta for tão grande que justifique a
canseira do caminho».[1] Assim, a esperança é a virtude que nos coloca a
caminho, dá asas para continuar, mesmo quando os obstáculos parecem
intransponíveis.
A nossa comunidade humana traz, na memória e na carne, os sinais das
guerras e conflitos que têm vindo a suceder-se, com crescente capacidade
destruidora, afetando especialmente os mais pobres e frágeis. Há nações
inteiras que não conseguem libertar-se das cadeias de exploração e
corrupção que alimentam ódios e violências. A muitos homens e mulheres,
crianças e idosos, ainda hoje se nega a dignidade, a integridade física,
a liberdade – incluindo a liberdade religiosa –, a solidariedade
comunitária, a esperança no futuro. Inúmeras vítimas inocentes carregam
sobre si o tormento da humilhação e da exclusão, do luto e da injustiça,
se não mesmo os traumas resultantes da opressão sistemática contra o
seu povo e os seus entes queridos.
As terríveis provações dos conflitos civis e dos conflitos
internacionais, agravadas muitas vezes por violências desalmadas, marcam
prolongadamente o corpo e a alma da humanidade. Na realidade, toda a
guerra se revela um fratricídio que destrói o próprio projeto de
fraternidade, inscrito na vocação da família humana.
Sabemos que, muitas vezes, a guerra começa pelo facto de não se
suportar a diversidade do outro, que fomenta o desejo de posse e a
vontade de domínio. Nasce, no coração do homem, a partir do egoísmo e do
orgulho, do ódio que induz a destruir, a dar uma imagem negativa do
outro, a excluí-lo e cancelá-lo. A guerra nutre-se com a perversão das
relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do
outro e a diferença vista como obstáculo; e simultaneamente alimenta
tudo isso.
Como fiz notar durante a recente viagem ao Japão, é paradoxal que «o
nosso mundo viva a dicotomia perversa de querer defender e garantir a
estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma
mentalidade de medo e desconfiança, que acaba por envenenar as relações
entre os povos e impedir a possibilidade de qualquer diálogo. A paz e a
estabilidade internacional são incompatíveis com qualquer tentativa de
as construir sobre o medo de mútua destruição ou sobre uma ameaça de
aniquilação total. São possíveis só a partir duma ética global de
solidariedade e cooperação ao serviço dum futuro modelado pela
interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira de
hoje e de amanhã».[2]
Toda a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a retirada para
dentro da própria condição. Desconfiança e medo aumentam a fragilidade
das relações e o risco de violência, num círculo vicioso que nunca
poderá levar a uma relação de paz. Neste sentido, a própria dissuasão
nuclear só pode criar uma segurança ilusória.
Por isso, não podemos pretender manter a estabilidade no mundo
através do medo da aniquilação, num equilíbrio muito instável, pendente
sobre o abismo nuclear e fechado dentro dos muros da indiferença, onde
se tomam decisões socioeconómicas que abrem a estrada para os dramas do
descarte do homem e da criação, em vez de nos guardarmos uns aos
outros.[3] Então como construir um caminho de paz e mútuo
reconhecimento? Como romper a lógica morbosa da ameaça e do medo? Como
quebrar a dinâmica de desconfiança atualmente prevalecente?
Devemos procurar uma fraternidade real, baseada na origem comum de
Deus e vivida no diálogo e na confiança mútua. O desejo de paz está
profundamente inscrito no coração do homem e não devemos resignar-nos
com nada de menos.
2. A paz, caminho de escuta baseado na memória, solidariedade e fraternidade
Os sobreviventes aos bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui – denominados os hibakusha
– contam-se entre aqueles que, hoje, mantêm viva a chama da consciência
coletiva, testemunhando às sucessivas gerações o horror daquilo que
aconteceu em agosto de 1945 e os sofrimentos indescritíveis que se
seguiram até aos dias de hoje. Assim, o seu testemunho aviva e preserva a
memória das vítimas, para que a consciência humana se torne cada vez
mais forte contra toda a vontade de domínio e destruição. «Não podemos
permitir que as atuais e as novas gerações percam a memória do que
aconteceu, aquela memória que é garantia e estímulo para construir um
futuro mais justo e fraterno».[4]
Como eles, há muitos, em todas as partes do mundo, que oferecem às
gerações futuras o serviço imprescindível da memória, que deve ser
preservada não apenas para evitar que se voltem a cometer os mesmos
erros ou se reproponham os esquemas ilusórios do passado, mas também
para que a memória, fruto da experiência, constitua a raiz e sugira a
vereda para as opções de paz presentes e futuras.
Mais ainda, a memória é o horizonte da esperança: muitas vezes, na
escuridão das guerras e dos conflitos, a lembrança mesmo dum pequeno
gesto de solidariedade recebida pode inspirar opções corajosas e até
heroicas, pode colocar em movimento novas energias e reacender nova
esperança nos indivíduos e nas comunidades.
Abrir e traçar um caminho de paz é um desafio muito complexo, pois os
interesses em jogo, nas relações entre pessoas, comunidades e nações,
são múltiplos e contraditórios. É preciso, antes de mais nada, fazer
apelo à consciência moral e à vontade pessoal e política. Com efeito, a
paz alcança-se no mais fundo do coração humano, e a vontade política
deve ser incessantemente revigorada para abrir novos processos que
reconciliem e unam pessoas e comunidades.
O mundo não precisa de palavras vazias, mas de testemunhas convictas,
artesãos da paz abertos ao diálogo sem exclusões nem manipulações. De
facto, só se pode chegar verdadeiramente à paz quando houver um convicto
diálogo de homens e mulheres que buscam a verdade mais além das
ideologias e das diferentes opiniões. A paz é uma construção que «deve
estar constantemente a ser edificada»,[5] um caminho que percorremos
juntos procurando sempre o bem comum e comprometendo-nos a manter a
palavra dada e a respeitar o direito. Na escuta mútua, podem crescer
também o conhecimento e a estima do outro, até ao ponto de reconhecer no
inimigo o rosto dum irmão.
Por conseguinte, o processo de paz é um empenho que se prolonga no
tempo. É um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça, que
honra a memória das vítimas e abre, passo a passo, para uma esperança
comum, mais forte que a vingança. Num Estado de direito, a democracia
pode ser um paradigma significativo deste processo, se estiver baseada
na justiça e no compromisso de tutelar os direitos de cada um,
especialmente se vulnerável ou marginalizado, na busca contínua da
verdade.[6] Trata-se duma construção social em contínua elaboração, para
a qual cada um presta responsavelmente a própria contribuição, a todos
os níveis da comunidade local, nacional e mundial.
Como assinalava o Papa São Paulo VI, «a dupla aspiração – à igualdade
e à participação – procura promover um tipo de sociedade democrática.
(…). Isto, de per si, já diz bem qual a importância de uma educação
para a vida em sociedade, em que, para além da informação sobre os
direitos de cada um, seja recordado também o seu necessário correlativo:
o reconhecimento dos deveres de cada um em relação aos outros. O
sentido e a prática do dever são, por sua vez, condicionados pelo
domínio de si mesmo, pela aceitação das responsabilidades e das
limitações impostas ao exercício da liberdade do indivíduo ou do
grupo».[7]
Pelo contrário, a fratura entre os membros duma sociedade, o aumento
das desigualdades sociais e a recusa de empregar os meios para um
desenvolvimento humano integral colocam em perigo a prossecução do bem
comum. Inversamente, o trabalho paciente, baseado na força da palavra e
da verdade, pode despertar nas pessoas a capacidade de compaixão e
solidariedade criativa.
Na nossa experiência cristã, fazemos constantemente memória de Cristo, que deu a sua vida pela nossa reconciliação (cf. Rm
5, 6-11). A Igreja participa plenamente na busca duma ordem justa,
continuando a servir o bem comum e a alimentar a esperança da paz,
através da transmissão dos valores cristãos, do ensinamento moral e das
obras sociais e educacionais.
3. A paz, caminho de reconciliação na comunhão fraterna
A Bíblia, particularmente através da palavra dos profetas, chama as
consciências e os povos à aliança de Deus com a humanidade. Trata-se de
abandonar o desejo de dominar os outros e aprender a olhar-se mutuamente
como pessoas, como filhos de Deus, como irmãos. O outro nunca há de ser
circunscrito àquilo que pôde ter dito ou feito, mas deve ser
considerado pela promessa que traz em si mesmo. Somente escolhendo a
senda do respeito é que será possível romper a espiral da vingança e
empreender o caminho da esperança.
Guia-nos a passagem do Evangelho que reproduz o seguinte diálogo
entre Pedro e Jesus: «“Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes
lhe deverei perdoar? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até
sete vezes, mas até setenta vezes sete”» (Mt 18, 21-22). Este
caminho de reconciliação convida-nos a encontrar no mais fundo do nosso
coração a força do perdão e a capacidade de nos reconhecermos como
irmãos e irmãs. Aprender a viver no perdão aumenta a nossa capacidade de
nos tornarmos mulheres e homens de paz.
O que é verdade em relação à paz na esfera social, é verdadeiro
também no campo político e económico, pois a questão da paz permeia
todas as dimensões da vida comunitária: nunca haverá paz verdadeira, se
não formos capazes de construir um sistema económico mais justo. Como
escreveu Bento XVI, «a vitória sobre o subdesenvolvimento exige que se
atue não só sobre a melhoria das transações fundadas sobre o
intercâmbio, nem apenas sobre as transferências das estruturas
assistenciais de natureza pública, mas sobretudo sobre a progressiva
abertura, em contexto mundial, para formas de atividade económica
caraterizadas por quotas de gratuidade e de comunhão».[8]
4. A paz, caminho de conversão ecológica
«Se às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a
justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser humano
sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes,
podemos reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que
devíamos guardar».[9]
Vendo as consequências da nossa hostilidade contra os outros, da
falta de respeito pela casa comum e da exploração abusiva dos recursos
naturais – considerados como instrumentos úteis apenas para o lucro de
hoje, sem respeito pelas comunidades locais, pelo bem comum e pela
natureza –, precisamos duma conversão ecológica.
O Sínodo recente sobre a Amazónia impele-nos a dirigir, de forma
renovada, o apelo em prol duma relação pacífica entre as comunidades e a
terra, entre o presente e a memória, entre as experiências e as
esperanças.
Este caminho de reconciliação inclui também escuta e contemplação do
mundo que nos foi dado por Deus, para fazermos dele a nossa casa comum.
De facto, os recursos naturais, as numerosas formas de vida e a própria
Terra foram-nos confiados para ser «cultivados e guardados» (cf. Gn
2, 15) também para as gerações futuras, com a participação responsável e
diligente de cada um. Além disso, temos necessidade duma mudança nas
convicções e na perspetiva, que nos abra mais ao encontro com o outro e à
receção do dom da criação, que reflete a beleza e a sabedoria do seu
Artífice.
De modo particular brotam daqui motivações profundas e um novo modo
de habitar na casa comum, de convivermos uns e outros com as próprias
diversidades, de celebrar e respeitar a vida recebida e partilhada, de
nos preocuparmos com condições e modelos de sociedade que favoreçam o
desabrochar e a permanência da vida no futuro, de desenvolver o bem
comum de toda a família humana.
Por conseguinte a conversão ecológica, a que apelamos, leva-nos a uma
nova perspetiva sobre a vida, considerando a generosidade do Criador
que nos deu a Terra e nos chama à jubilosa sobriedade da partilha. Esta
conversão deve ser entendida de maneira integral, como uma transformação
das relações que mantemos com as nossas irmãs e irmãos, com os outros
seres vivos, com a criação na sua riquíssima variedade, com o Criador
que é origem de toda a vida. Para o cristão, uma tal conversão exige
«deixar emergir, nas relações com o mundo que o rodeia, todas as
consequências do encontro com Jesus».[10]
5. Obtém-se tanto quanto se espera [11]
O caminho da reconciliação requer paciência e confiança. Não se obtém a paz, se não a esperamos.
Trata-se, antes de mais nada, de acreditar na possibilidade da paz,
de crer que o outro tem a mesma necessidade de paz que nós. Nisto,
pode-nos inspirar o amor de Deus por cada um de nós, amor libertador,
ilimitado, gratuito, incansável.
O medo é, frequentemente, fonte de conflito. Por isso, é importante
ir além dos nossos temores humanos, reconhecendo-nos filhos necessitados
diante d’Aquele que nos ama e espera por nós, como o Pai do filho
pródigo (cf. Lc 15, 11-24). A cultura do encontro entre irmãos e
irmãs rompe com a cultura da ameaça. Torna cada encontro uma
possibilidade e um dom do amor generoso de Deus. Faz-nos de guia para
ultrapassarmos os limites dos nossos horizontes estreitos, procurando
sempre viver a fraternidade universal, como filhos do único Pai celeste.
Para os discípulos de Cristo, este caminho é apoiado também pelo
sacramento da Reconciliação, concedido pelo Senhor para a remissão dos
pecados dos batizados. Este sacramento da Igreja, que renova as pessoas e
as comunidades, convida a manter o olhar fixo em Jesus, que reconciliou
«todas as coisas, pacificando pelo sangue da sua cruz, tanto as que
estão na terra como as que estão no céu» (Col 1, 20); e pede para
depor toda a violência nos pensamentos, nas palavras e nas obras quer
para com o próximo quer para com a criação.
A graça de Deus Pai oferece-se como amor sem condições. Recebido o
seu perdão, em Cristo, podemos colocar-nos a caminho para ir oferecê-lo
aos homens e mulheres do nosso tempo. Dia após dia, o Espírito Santo
sugere-nos atitudes e palavras para nos tornarmos artesãos de justiça e
de paz.
Que o Deus da paz nos abençoe e venha em nossa ajuda.
Que Maria, Mãe do Príncipe da paz e Mãe de todos os povos da terra,
nos acompanhe e apoie, passo a passo, no caminho da reconciliação.
E que toda a pessoa que vem a este mundo possa conhecer uma
existência de paz e desenvolver plenamente a promessa de amor e vida que
traz em si.
Vaticano, 8 de dezembro de 2019.
[Franciscus]
[1] Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 30 de novembro de 2007, 1.
[2] Discurso sobre as armas nucleares, Nagasáqui – Parque «Atomic Bomb Hypocenter», 24 de novembro de 2019.
[3] Cf. Francisco, Homilia em Lampedusa, 8 de julho de 2013.
[4] Francisco, Discurso sobre a Paz, Hiroxima – Memorial da Paz, 24 de novembro de 2019.
[5] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 78.
[6] Cf. Bento XVI, Discurso aos dirigentes e membros das Associações Cristãs dos Trabalhadores Italianos (ACLI), 27 de janeiro de 2006.
[7] Carta ap. Octogesima adveniens, 14 de maio de 1971, 24.
[8] Carta enc. Caritas in veritate, 29 de junho de 2009, 39.
[9] Francisco, Carta enc. Laudato si’, 24 de maio de 2015, 200.
[10] Ibid., 217.
[11] Cf. São João da Cruz, Noite Escura, II, 21, 8