Carta Apostólica | Aperuit Illis
18 Janeiro 2020
DO SANTO PADRE, FRANCISCO
PELA QUAL SE INSTITUI O DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS
1. «ABRIU-LHES o entendimento para compreenderem as Escrituras» (Lc
24, 45). Trata-se de um dos últimos gestos realizados pelo Senhor
ressuscitado, antes da sua Ascensão. Encontrando-se os discípulos
reunidos, Jesus aparece-lhes, parte o pão com eles e abre-lhes o
entendimento à compreensão das sagradas Escrituras. Revela àqueles
homens, temerosos e desiludidos, o sentido do mistério pascal, ou seja,
que Ele, segundo os desígnios eternos do Pai, devia sofrer a paixão e
ressuscitar dos mortos para oferecer a conversão e o perdão dos pecados
(cf. Lc 24, 26.46-47); e promete o Espírito Santo que lhes dará a força para serem testemunhas deste mistério de salvação (cf. Lc 24, 49).
A relação entre o Ressuscitado, a comunidade dos crentes e a Sagrada
Escritura é extremamente vital para a nossa identidade. Sem o Senhor que
nos introduz na SagradaEscritura, é impossível compreendê-la em
profundidade; mas é verdade também o contrário, ou seja, que, sem a
Sagrada Escritura, permanecem indecifráveis os acontecimentos da missão
de Jesus e da sua Igreja no mundo. Como justamente escreve S. Jerónimo,
«a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo» (Commentarii in Isaiam, Prologus: PL 24, 17).
2. No termo do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, pedi que se pensasse num «domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo» (Carta ap. Misericordia et misera, 7). A dedicação dum domingo do Ano Litúrgico particularmente à Palavra de Deus permite, antes de mais nada, fazer a Igreja reviver o gesto do Ressuscitado que abre, também para nós, o tesouro da sua Palavra, para podermos ser no mundo arautos desta riqueza inexaurível. A propósito, voltam à mente os ensinamentos de Santo Efrém: «Quem poderá compreender, Senhor, toda a riqueza duma só das tuas palavras? Como o sedento que bebe da fonte, muito mais é o que perdemos do que o que tomamos. A tua palavra apresenta muitos aspetos diversos, como diversas são as perspetivas daqueles que a estudam. O Senhor pintou a sua palavra com muitas belezas, para que aqueles que a perscrutam possam contemplar aquilo que preferirem. Escondeu na sua palavra todos os tesouros, para que cada um de nós se enriqueça em qualquer dos pontos que medita» (Comentários sobre o Diatessaron, 1, 18).
Assim, com esta Carta, pretendo dar resposta a muitos pedidos que me
chegaram da parte do povo de Deus no sentido de se poder celebrar o Domingo da Palavra de Deus
em toda a Igreja e com unidade de intenções. Já se tornou uma prática
comum viver certos momentos em que a comunidade cristã se concentra
sobre o grande valor que a Palavra de Deus ocupa na sua vida diária. Nas
diversas Igrejas locais, há uma riqueza de iniciativas que torna a
Sagrada Escritura cada vez mais acessível aos crentes para os fazerem
sentir-se agradecidos por tão grande dom, comprometidos a vivê-lo no dia
a dia e responsáveis por testemunhá-lo com coerência.
O Concílio Ecuménico Vaticano II deu um grande impulso à redescoberta da Palavra de Deus, com a constituição dogmática Dei Verbum. Das suas páginas que merecem ser sempre meditadas e vividas, emergem de forma clara a natureza da Sagrada Escritura, a sua transmissão de geração em geração (cap. II), a sua inspiração divina (cap. III) que abraça o Antigo e o Novo Testamento (caps. IV e V) e a sua importância para a vida da Igreja (cap. VI). Para incrementar esta doutrina, Bento XVI convocou em 2008 uma Assembleia do Sínodo dos Bispos sobre o tema «A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja» e, depois dela, publicou a exortação apostólica Verbum Domini, que constitui um ensinamento imprescindível para as nossas comunidades[1]. Neste Documento, aprofunda-se de modo particular o caráter performativo da Palavra de Deus, sobretudo quando, na ação litúrgica, emerge o seu caráter propriamente sacramental[2].
Por isso, é bom que não venha jamais a faltar na vida do nosso povo
esta relação decisiva com a Palavra viva, que o Senhor nunca Se cansa de
dirigir à sua Esposa, para que esta possa crescer no amor e no
testemunho da fé.
3. Portanto estabeleço que o III Domingo do Tempo Comum seja dedicado
à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus. Este Domingo da Palavra de Deus
colocar-se-á, assim, num momento propício daquele período do ano em que
somos convidados a reforçar os laços com os judeus e a rezar pela
unidade dos cristãos. Não se trata de mera coincidência temporal: a
celebração do Domingo da Palavra de Deus expressa uma valência
ecuménica, porque a Sagrada Escritura indica, a quantos se colocam à sua
escuta, o caminho a seguir para se chegar a uma unidade autêntica e
sólida.
As comunidades encontrarão a forma de viver este Domingo como
um dia solene. Entretanto será importante que, na celebração
eucarística, se possa entronizar o texto sagrado, de modo a tornar
evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que possui a Palavra
de Deus. Neste Domingo, em particular, será útil colocar em evidência a
sua proclamação e adaptar a homilia para se pôr em destaque o serviço
que se presta à Palavra do Senhor. Neste Domingo, os Bispos poderão
celebrar o rito do Leitorado ou confiar um ministério semelhante, a fim
de chamar a atenção para a importância da proclamação da Palavra de Deus
na liturgia. De facto, é fundamental que se faça todo o esforço
possível no sentido de preparar alguns fiéis para serem verdadeiros
anunciadores da Palavra com uma preparação adequada, tal como já
acontece habitualmente com os acólitos ou os ministros extraordinários
da comunhão. Da mesma maneira, os párocos poderão encontrar formas de
entregar a Bíblia, ou um dos seus livros, a toda a assembleia, de modo a
fazer emergir a importância de continuar na vida diária a leitura, o
aprofundamento e a oração com a Sagrada Escritura, com particular
referência à lectio divina.
4. O regresso do povo de Israel à pátria, depois do exílio de
Babilónia, foi assinalado de modo significativo pela leitura do livro da
Lei. A Bíblia dá-nos uma comovente descrição daquele momento, no livro
de Neemias. O povo está reunido em Jerusalém, na praça da Porta das
Águas, a escutar a Lei. Aquele povo dispersara-se com a deportação, mas
agora encontra-se reunido à volta da Sagrada Escritura «como um só
homem» (Ne 8, 1). Durante a leitura do Livro sagrado, o povo «escutava com atenção» (Ne
8, 3), ciente de encontrar naquela palavra o sentido para os
acontecimentos vividos. Em reação à proclamação daquelas palavras,
brotou a comoção e o pranto. Os levitas «liam, clara e distintamente, o
livro da Lei de Deus e explicavam o seu sentido, de modo que se pudesse
compreender a leitura. O governador Neemias, Esdras, sacerdote e
escriba, e os levitas que instruíam o povo disseram a toda a multidão:
“Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus; não vos entristeçais
nem choreis”. Pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei. (…)
“Não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa força”» (Ne 8, 8-9.10).
Estas palavras encerram uma grande lição. A Bíblia não pode ser
património só de alguns e, menos ainda, uma coletânea de livros para
poucos privilegiados. Pertence, antes de mais nada, ao povo convocado
para a escutar e se reconhecer nesta Palavra. Muitas vezes, surgem
tendências que procuram monopolizar o texto sagrado, desterrando-o para
alguns círculos ou grupos escolhidos. Não pode ser assim. A Bíblia é o
livro do povo do Senhor que, escutando-a, passa da dispersão e divisão à
unidade. A Palavra de Deus une os crentes e faz deles um só povo.
5. Nesta unidade gerada pela escuta, primariamente os Pastores têm a
grande responsabilidade de explicar e fazer compreender a todos a
Sagrada Escritura. Uma vez que é o livro do povo, todos os que têm a
vocação de ser ministros da Palavra devem sentir fortemente a exigência
de a tornar acessível à sua comunidade.
De modo particular, a homilia desempenha uma função totalmente peculiar, porque possui «um caráter quase sacramental» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 142). Introduzir profundamente na Palavra de Deus, com uma linguagem simples e adaptada a quem escuta, requer do sacerdote que faça descobrir também «a beleza das imagens que o Senhor utilizava para incentivar a prática do bem» (Ibid., 142). Trata-se duma oportunidade pastoral a não perder!
Com efeito, para muitos dos nossos fiéis, esta é a única ocasião que
têm para captar a beleza da Palavra de Deus e a ver referida à sua vida
diária. Por isso, é preciso dedicar tempo conveniente à preparação da
homilia. Não se pode improvisar o comentário às leituras sagradas.
Sobretudo a nós, pregadores, pede-se o esforço de não nos alongarmos
desmesuradamente com homilias enfatuadas ou sobre assuntos não
atinentes. Se nos detivermos a meditar e rezar sobre o texto sagrado,
então seremos capazes de falar com o coração para chegar ao coração das
pessoas que escutam, de modo a expressar o essencial que é recebido e
produz fruto. Nunca nos cansemos de dedicar tempo e oração à Sagrada
Escritura, para que seja acolhida, «não como palavra de homens, mas como
ela é realmente, palavra de Deus» (1 Ts 2, 13).
É bom também que os catequistas, atendendo ao ministério que
desempenham de ajudar a crescer na fé, sintam a urgência de se renovar
através da familiaridade e estudo das sagradas Escrituras, que lhes
consintam promover um verdadeiro diálogo entre aqueles que os escutam e a
Palavra de Deus.
6. Antes de ir ter com os discípulos, que estavam fechados em casa, e
de lhes abrir a mente ao entendimento da Sagrada Escritura (cf. Lc 24, 44-45), o Ressuscitado aparece a dois deles no caminho que vai de Jerusalém a Emaús (cf. Lc
24, 13-35). Na sua narração, o evangelista Lucas faz notar que se
verificou no próprio dia da Ressurreição, ou seja, no domingo. Aqueles
dois discípulos conversavam sobre os recentes acontecimentos da paixão e
morte de Jesus. O seu caminho é marcado pela tristeza e a desilusão,
devido ao trágico fim de Jesus. Esperaram n’Ele como Messias libertador,
e agora embatem no escândalo do Crucificado. Discretamente, o
Ressuscitado em pessoa aproxima-Se e caminha com os discípulos, mas eles
não O reconhecem (cf. Lc 24, 16). Ao longo do caminho, o Senhor
interpela-os, dando-Se conta de que não compreenderam o sentido da sua
paixão e morte; chama-lhes «homens sem inteligência e lentos de
espírito» (Lc 24, 25) e, «começando por Moisés e seguindo por
todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que Lhe
dizia respeito» (Lc 24, 27). Cristo é o primeiro exegeta! Não só
as Escrituras antigas tinham predito aquilo que Jesus havia de
realizar, mas Ele próprio quis ser fiel àquela Palavra para tornar
evidente a única história da salvação, que n’Ele encontra a sua
realização.
7. Por isso a Bíblia, enquanto Escritura Sagrada,fala de Cristo e
anuncia-O como Aquele que deve passar pelo sofrimento para entrar na
glória (cf. Lc 24,26). E d’Ele falam não só uma parte, mas todas
as Escrituras. Sem estas, são indecifráveis a sua morte e ressurreição.
Por isso, uma das mais antigas confissões de fé sublinha que Cristo
«morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Cefas»(1 Cor
15, 3-5). Uma vez que as Escrituras falam de Cristo, consentem
acreditar que a sua morte e ressurreição não pertencem à mitologia mas
à história, e encontram-se no centro da fé dos seus discípulos.
É profundo o vínculo entre a Sagrada Escritura e a fé dos crentes.
Sabendo que a fé vem da escuta, e a escuta centra-se na Palavra de
Cristo (cf. Rm 10, 17), daí se vê a urgência e a importância que
os crentes devem dar à escuta da Palavra do Senhor, tanto na ação
litúrgica, como na oração e reflexão pessoais.
8. A «viagem» do Ressuscitado com os discípulos de Emaús conclui com a
ceia. O misterioso Viandante acede ao pedido insistente que os dois Lhe
dirigem: «Fica connosco, pois a noite vai caindo e o dia já está no
ocaso» (Lc 24, 29). Sentam-se à mesa; Jesus toma o pão, pronuncia
a bênção, parte-o e dá-o a eles. Naquele momento, abrem-se-lhes os
olhos e reconhecem-No (cf. Lc 24, 31).
A partir desta cena, compreendemos como seja indivisível a relação entre a Sagrada Escritura e a Eucaristia. O Concílio Vaticano II ensina: «A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo» (Dei Verbum, 21).
A frequência assídua da Sagrada Escritura e a celebração da
Eucaristia tornam possível o reconhecimento entre pessoas que são parte
umas das outras. Como cristãos, somos um só povo que caminha na
história, fortalecido pela presença no meio de nós do Senhor que nos
fala e alimenta. O dia dedicado à Bíblia pretende ser, não «uma vez no
ano», mas uma vez por todo o ano, porque temos urgente necessidade de
nos tornar familiares e íntimos da Sagrada Escritura e do Ressuscitado,
que não cessa de partir a Palavra e o Pão na comunidade dos crentes.
Para tal, precisamos de entrar em confidência assídua com a Sagrada
Escritura; caso contrário, o coração fica frio e os olhos permanecem
fechados, atingidos, como somos, por inumeráveis formas de cegueira.
Sagrada Escritura e Sacramentos são inseparáveis entre si. Quando os
Sacramentos são introduzidos e iluminados pela Palavra, manifestam-se
mais claramente como a meta dum caminho onde o próprio Cristo abre a
mente e o coração ao reconhecimento da sua ação salvífica. Neste
contexto, é preciso não esquecer um ensinamento que vem do livro do
Apocalipse; lá se ensina que o Senhor está à porta e bate. Se uma pessoa
ouvir a sua voz e Lhe abrir a porta, Ele entra para cear junto com ela
(cf. 3, 20). Cristo Jesus bate à nossa porta através da Sagrada
Escritura; se ouvirmos e abrirmos a porta da mente e do coração, então
Ele entra na nossa vida e permanece connosco.
9. Na II Carta a Timóteo, que de certa forma constitui o testamento espiritual de Paulo, este recomenda ao seu fiel colaborador que frequente assiduamente a Sagrada Escritura. O Apóstolo está convencido de que «toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (3, 16). Esta recomendação de Paulo a Timóteo constitui uma base sobre a qual a constituição conciliar Dei Verbum aborda o grande tema da inspiração da Sagrada Escritura, base essa donde emergem particularmente a finalidade salvífica, a dimensão espiritual e o princípio da encarnação para a Sagrada Escritura.
Apelando-se, antes de mais nada, à recomendação de Paulo a Timóteo, a Dei Verbum sublinha que «os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Escrituras» (n. 11). Porque estas instruem tendo em vista a salvação pela fé em Cristo (cf. 2 Tm 3, 15), as verdades nelas contidas servem para a nossa salvação. A Bíblia não é uma coletânea de livros de história nem de crónicas, mas está orientada completamente para a salvação integral da pessoa. A inegável radicação histórica dos livros contidos no texto sagrado não deve fazer esquecer esta finalidade primordial: a nossa salvação. Tudo está orientado para esta finalidade inscritana própria natureza da Bíblia,composta como história de salvação na qual Deus fala e age para ir ao encontro de todos os homens e salvá-los do mal e da morte.
Para alcançar esta finalidade salvífica, a Sagrada Escritura, sob a ação do Espírito Santo, transforma em Palavra de Deus a palavra dos homens escrita à maneira humana (cf. Dei Verbum, 12). O papel do Espírito Santo na Sagrada Escritura é fundamental. Sem a sua ação, estaria sempre iminente o risco de ficarmos fechados apenas no texto escrito, facilitando uma interpretação fundamentalista, da qual é necessário manter-se longe para não trair o caráter inspirado, dinâmico e espiritual que o texto possui. Como recorda o Apóstolo, «a letra mata, enquanto o Espírito dá a vida» (2 Cor 3, 6). Por conseguinte, o Espírito Santo transforma a Sagrada Escritura em Palavra viva de Deus, vivida e transmitida na fé do seu povo santo.
10. A ação do Espírito Santonão diz respeito apenas à formação da Sagrada Escritura, mas atua também naqueles que se colocam à escuta da Palavra de Deus. É importante a afirmação dos padres conciliares, segundo a qual a Sagrada Escritura deve ser «lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita» (Dei Verbum, 12). Com Jesus Cristo, a revelação de Deus alcança a sua realização e plenitude; e, todavia, o Espírito Santo continua a sua ação. De facto, seria redutivo limitar a ação do Espírito Santo apenas à natureza divinamente inspirada da Sagrada Escritura e aos seus diversos autores. Por isso, é necessário ter confiança na ação do Espírito Santo que continua a realizar uma sua peculiar forma de inspiração, quando a Igreja ensina a Sagrada Escritura, quando o Magistério a interpreta de forma autêntica (cf. ibid., 10) e quando cada crente faz dela a sua norma espiritual. Neste sentido, podemos compreender as palavras ditas por Jesus aos discípulos, depois que estes Lhe asseveraram ter compreendido o significado das suas parábolas: «Todo o doutor da lei instruído acerca do Reino do Céu é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro» (Mt 13, 52).
11. Por fim, a Dei Verbum especifica que «as palavras de Deus, expressas por línguas humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana, como outrora o Verbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens, tomando a carne da fraqueza humana» (n. 13). Isto equivale a dizer que a encarnação do Verbo de Deus dá forma e sentido à relação entre a Palavra de Deus e a linguagem humana, com as suas condições históricas e culturais. É neste evento que ganha forma a Tradição, também ela Palavra de Deus (cf. ibid., 9). Muitas vezes corre-se o risco de separar Sagrada Escritura e Tradição, sem compreender que elas, juntas, constituem a única fonte da Revelação. O caráter escrito da primeira, nada tira ao facto de ela ser plenamente palavra viva; assim como a Tradição viva da Igreja, que no decurso dos séculos a transmite incessantemente de geração em geração, possui aquele livro sagrado como a «regra suprema da fé» (Ibid., 21). Além disso, antes de se tornar um texto escrito, a Palavra de Deus foi transmitida oralmente e mantida viva pela fé dum povo que a reconhecia como sua história e princípio de identidade no meio de tantos outros povos. Por isso, a fé bíblica funda-se sobre a Palavra viva, não sobre um livro.
12. Quando a Sagrada Escritura é lida com o mesmo Espírito com que
foi escrita, permanece sempre nova. O Antigo Testamento nunca é velho,
uma vez que é parte do Novo, pois tudo é transformado pelo único
Espírito que o inspira. O texto sagrado inteiro possui uma função
profética: esta não diz respeito ao futuro, mas ao hoje de quem se
alimenta desta Palavra. Afirma-o claramente o próprio Jesus, no início
do seu ministério: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que
acabais de ouvir» (Lc 4, 21). Quem se alimenta dia a dia da
Palavra de Deus torna-se, como Jesus, contemporâneo das pessoas que
encontra; não se sente tentado a cair em nostalgias estéreis do passado,
nem em utopias desencarnadas relativas ao futuro.
A Sagrada Escritura desempenha a sua ação profética, antes de mais
nada, em relação a quem a escuta, provocando-lhe doçura e amargura. Vêm à
mente as palavras do profeta Ezequiel, quando, convidado pelo Senhor a
comer o rolo do livro, confessa: «Ele foi, na minha boca, doce como o
mel» (3, 3). Também o evangelista João revive, na ilha de Patmos, a
mesma experiência de Ezequiel de comer o livro, mas acrescenta algo de
mais específico: «Na minha boca era doce como o mel; mas, depois de o
comer, as minhas entranhas encheram-se de amargura» (Ap 10, 10).
A doçura da Palavra de Deus impele-nos a comunicá-la a quantos
encontramos na nossa vida, expressando a certeza da esperança que ela
contém (cf. 1 Ped 3, 15-16). Entretanto a amargura apresenta-se,
muitas vezes, no facto de verificar como se torna difícil para nós
termos de a viver com coerência, ou de constatar sensivelmente que é
rejeitada, porque não se considera válida para dar sentido à vida. Por
isso, é necessário que nunca nos abeiremos da Palavra de Deus por mero
hábito, mas nos alimentemos dela para descobrir e viver em profundidade a
nossa relação com Deus e com os irmãos.
13. Outra provocação que nos vem da Sagrada Escritura tem a ver com a
caridade. A Palavra de Deus apela constantemente para o amor
misericordioso do Pai, que pede a seus filhos para viverem na caridade. A
vida de Jesus é a expressão plena e perfeita deste amor divino, que
nada guarda para si, mas a todos se oferece sem reservas. Na parábola do
pobre Lázaro, encontramos uma indicação preciosa. Depois da morte de
Lázaro e do rico, este vê o pobre no seio de Abraão e pede para Lázaro
ser enviado a casa dos seus irmãos a fim de os advertir sobre a vivência
do amor do próximo para evitar que venham sofrer os mesmos tormentos
dele. A resposta de Abraão é incisiva: «Têm Moisés e os Profetas; que os
oiçam!» (Lc 16, 29). Escutar as sagradas Escrituras para
praticar a misericórdia: este é um grande desafio lançado à nossa vida. A
Palavra de Deus é capaz de abrir os nossos olhos, permitindo-nos sair
do individualismo que leva à asfixia e à esterilidade enquanto abre a
estrada da partilha e da solidariedade.
14. Um dos episódios mais significativos desta relação entre Jesus e
os discípulos é a Transfiguração. Acompanhado por Pedro, Tiago e João,
Jesus sobe ao monte para rezar. Os evangelistas lembram como se tornaram
resplandecentes o rosto e as vestes de Jesus, enquanto dois homens
conversavam com Ele: Moisés e Elias, que personificam respetivamente a
Lei e os Profetas, isto é, as sagradas Escrituras. A reação de Pedro a
tal visão transborda de jubilosa maravilha: «Mestre, é bom estarmos
aqui. Façamos três tendas: uma para Ti, uma para Moisés e outra para
Elias» (Lc 9, 33). Naquele momento, uma nuvem cobre-os com a sua sombra, e o medo apodera-se dos discípulos.
A Transfiguração faz pensar na Festa dos Tabernáculos, quando Esdras e Neemias liam o texto sagrado ao povo, depois do regresso do exílio. Ao mesmo tempo, antecipa a glória de Jesus como preparação para o escândalo da paixão; glória divina que é evocada também pela nuvem que envolve os discípulos, símbolo da presença do Senhor. Esta Transfiguração é semelhante à da Sagrada Escritura, que se transcende a si mesma, quando alimenta a vida dos crentes. Como nos recorda a Verbum Domini, «para se recuperar a articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se decisivo identificar a passagem entre letra e espírito. Não se trata duma passagem automática e espontânea; antes, é preciso transcender a letra» (n. 38).
15. No caminho da receção da Palavra de Deus, acompanha-nos a Mãe do
Senhor, reconhecida como bem-aventurada por ter acreditado no
cumprimento daquilo que Lhe dissera o Senhor (cf. Lc 1, 45). A
bem-aventurança de Maria antecede todas as bem-aventuranças pronunciadas
por Jesus para os pobres, os aflitos, os mansos, os pacificadores e os
que são perseguidos, porque é condição necessária para qualquer outra
bem-aventurança. Nenhum pobre é bem-aventurado por ser pobre; mas passa a
sê-lo, se, como Maria, acreditar no cumprimento da Palavra de Deus.
Lembra-o um grande discípulo e mestre da Sagrada Escritura, Santo
Agostinho: «Uma pessoa do meio da multidão, cheia de entusiasmo,
exclamou: “Bem-aventurado o ventre que Te trouxe”. E Ele: “Mais felizes
são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam”. Como que a dizer:
também a minha mãe, a quem tu chamas bem-aventurada, é bem-aventurada
justamente porque guarda a palavra de Deus, não porque n’Ela o Verbo Se
fez carne e habitou entre nós, mas porque guarda o próprio Verbo de Deus
por meio do Qual foi feita, e que n’Ela Se fez carne» (Sobre o Evangelho de São João, 10, 3).
Possa o domingo dedicado à Palavra fazer crescer no povo de Deus uma
religiosa e assídua familiaridade com as sagradas Escrituras, tal como
ensinava o autor sagrado já nos tempos antigos: esta palavra «está muito
perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a praticares» (Dt 30, 14).
Roma, em São João de Latrão, no dia 30 de setembro de 2019,
Memória litúrgica de São Jerónimo e início do 1600º aniversário da sua
morte.
Francisco
[1] Cf. AAS 102 (2010), 692-787.
[2] «Assim é possível compreender a sacramentalidade da Palavra através da analogia com a presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho consagrados. Aproximando-nos do altar e participando no banquete eucarístico, comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A proclamação da Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio Cristo que Se faz presente e Se dirige a nós para ser acolhido» (Verbum Domini, 56).